Quando a perda do emprego -
ou um propósito novo - faz o profissional se reinventar.
Como fazer uma
grande virada na carreira? Que cuidados é preciso tomar?
Seja por aumentar o desemprego ou por criar
ambientes profissionais insatisfatórios, a crise econômica acabou forçando
muita gente a se reinventar na carreira.
Ainda que essa reinvenção muitas vezes ocorra com a
abertura de um negócio próprio, muitos brasileiros encontram, em empregos
convencionais, formas de mudar completamente o rumo profissional.
A BBC Brasil conversou tanto com especialistas como
com gente que, ao descobrir um novo propósito na vida profissional, resolveu
arriscar mudanças radicais.
Formado em Artes Plásticas, Marcello Passeri, 51
anos, tem décadas de experiência em agências de publicidade. Chegou a ter sua
própria empresa, com uma boa carteira de clientes e um retorno financeiro
satisfatório.
Mas o avanço da internet mexeu com esse mercado,
transformando trabalhos manuais em digitais e mudando a configuração de vários
departamentos dentro das agências.
"A estratégia, o planejamento - tudo mudou.
Até agências grandes quebraram ou foram absorvidas", conta. Enfrentando
problemas de sociedade e sem capital para bancar a total reinvenção que seria
necessária, Marcello quebrou.
Certo de que precisava inventar algo totalmente
novo na sua vida profissional, ele decidiu arriscar. Por intermédio do irmão
arquiteto, acabou sendo contratado como líder de vendas de uma empresa de
revestimentos acústicos.
Hoje, acumula a tarefa com a instalação dos
produtos da empresa - um trabalho difícil, delicado e especializado que ele
domina graças à expertise com trabalhos manuais adquirida ainda na época da
carreira publicitária.
"A gente às vezes toma alguns chutes fortes da
vida, que nos fazem perceber que precisamos mudar", avalia Marcello.
"O meu primeiro ano nesta atual carreira foi
bem difícil. É preciso estar predisposto a mudar e a aprender. Consigo me
manter bem e hoje já posso elaborar um planejamento para o próximo ano, mas não
tenho toda a segurança do mundo - e acho que nunca terei.
O mundo muda rápido demais, vamos ter que viver
prestando atenção e nos preparando para o caso de amanhã não existir mais o
trabalho que fazemos hoje."
Mentoria
Navegar em um mundo em eterna mudança pode
assustar, mas buscar novos caminhos fica mais fácil quando se tem um bom
mentor.
Morador de São Paulo e filho de franceses, o
administrador Philippe Boutaud foi presidente em companhias de grande porte,
mas optou por encerrar a sua carreira como executivo aos 50 anos e, após um
período como consultor de recrutamento de executivos, entrou em contato com o
mundo das start-ups.
Com 59 anos hoje, Philippe atua como
investidor-anjo, ou seja, investindo o próprio patrimônio em startups e dando
mentoria aos projetos.
"No mundo das start-ups vejo pessoas com
ideias muito boas, mas que não sabem o que é uma nota fiscal ou um fluxo de
caixa.
Daí a importância da mentoria. É muito estimulante
saber que posso ser útil e produtivo ajudando essas empresas", diz.
Ele, no entanto, não pertence à tribo dos que
enxergam um mundo radicalmente diferente batendo à nossa porta. "Já
ouvimos que o rádio ia morrer, depois que o cinema ia morrer e por aí vai. Nada
disso faz sentido.
As empresas nas quais trabalhei, por exemplo,
certamente vão permanecer. Mas vão precisar mudar um pouco. Já estão mudando.
Vide a colaboração cada vez maior entre elas e as start-ups, junto com a criação
de centros ou departamentos internos inteiros voltados à inovação", diz.
Mudança
radical deve ser considerada não apenas pelas circunstâncias do momento, mas
também quando a insatisfação e o desgosto são generalizados
História semelhante tem Eduardo Smith, de
Florianópolis. Atualmente investidor-anjo, ele tem 47 anos, é formado em
ciências da computação e tem duas décadas de experiência como executivo de uma
empresa de comunicação.
Em 2015, sem ver mais possibilidades de crescimento
por lá, ele se demitiu e se deu um tempo para pensar no que iria fazer depois.
"Não estava no meu radar ser mentor ou
investir em start-ups. Mas uma vez que saí da empresa passei a ter algo que não
tinha antes na mesma medida: tempo.
E esse tempo me permitiu conversar com bastante
gente. Algumas dessas conversas me levaram a ajudar pessoas e a perceber que eu
possuía um conhecimento valioso", conta.
Os empreendedores que o procuravam pediam que
Eduardo os ajudasse das mais diversas formas: aportando dinheiro, abrindo
portas e oferecendo mentoria. Foi então que o ex-executivo decidiu começar a
estudar esse mercado mais detalhadamente.
Foram seis meses de preparação antes de Eduardo
fazer o seu primeiro investimento em uma aceleradora.
Passados três anos, ele hoje possui 24
investimentos, sendo um terço deles nos Estados Unidos e dois terços no Brasil.
Diferentes formas de reinvenção
Priscilla de Sá, psicóloga e coach de carreira, diz
que analisar com o máximo de frieza possível a natureza das próprias
insatisfações é fundamental para que o profissional que esteja em crise na
carreira ou tenha acabado de perder o emprego saiba qual rumo tomar.
Se a decisão for pela ruptura completa, essa
mudança radical deve ser considerada não apenas pelas circunstâncias do
momento, mas também quando a insatisfação e o desgosto são generalizados.
"Você olha para o seu chefe e para o chefe do
seu chefe e percebe que não quer ser como eles, não quer fazer o que eles fazem
e levar a vida que eles levam.
A pessoa que está nesta situação muitas vezes não
tem mais orgulho da carreira ou mesmo da sua profissão. Ele vai ter que virar
outro profissional", explica Priscilla.
Você
olha para o seu chefe e para o chefe do seu chefe e percebe que não quer ser
como eles, não quer fazer o que eles fazem e levar a vida que eles levam",
explica a coach Priscilla.
Mas mesmo quem está convencido da necessidade de
uma ruptura precisa se cercar de muitos cuidados.
"Existe uma lista de o que não se pode fazer
nessas horas. A primeira delas é jamais tomar uma decisão motivada por
revanchismos.
Muitas pessoas saem de uma empresa com raiva da
organização, do chefe, do conselho. Esse lugar da mágoa é o pior em que se pode
estar na hora de tomar uma decisão.
Isso porque a nova realidade que esse profissional
quer para a sua vida vai acabar nascendo de algo reativo, algo defensivo, e não
de uma ação", aconselha a coach.
"É preciso resolver as próprias mágoas, curar
as feridas e fazer o exercício de pensar em três ou cinco coisas boas que se
viveu na experiência profissional passada.
Sempre há o que se aproveitar, sempre existe
aprendizado e nós temos que ser capazes de enxergar isso."
O outro alerta que Priscilla faz é que não se deve
abrir um negócio próprio sem muita reflexão prévia. Ideias como "eu não
quero mais ter chefe" são equivocadas e bastante perigosas, diz ela.
"Os seus milhares de chefes, que serão os seus
clientes, podem ser tão nefastos quando o seu ex-chefe. Você pode se revelar um
chefe implacável com você mesmo, o pior dos chefes quando, por exemplo, não se
permite descansar em um final de semana ou tirar um dia de folga",
exemplifica.
Logo, essa não pode ser a principal motivação por trás
de um negócio ou de um plano de uma nova carreira.
Pensar nos outros
Além
disso, é preciso pensar além do próprio umbigo e pesquisar o mercado.
"Muitas vezes, o profissional que é demitido
ou se demite por insatisfação entra em uma fase muito autocentrada, em que
deseja pensar apenas no seu futuro, seus desejos e suas necessidades.
Mas começar um negócio próprio é, por definição,
ter que pensar nos outros. Afinal, os produtos ou serviços que serão criados
serão criados para os outros, não para nós mesmos", diz.
O networking é
outro motivo para se manter fora da concha.
"É preciso achar a sua turma. Trocar
experiências com pessoas desse novo mercado, frequentar palestras, cursos e
assim por diante. O networking é uma poupança que fazemos, uma semente que se
lança despretensiosamente e que em algum momento do futuro será útil",
ensina Priscilla.
Crise econômica
exacerba insatisfações profissionais e eleva desemprego
E melhor ainda se, no meio dessa nova
"turma", o empreendedor se deparar com mentores.
"Existe muita gente por aí disposta a ajudar.
Mais do que parece", acredita Priscilla. O caso dos ex-executivos Eduardo
e Philippe ilustra isso. "A realização que um mentor tem na hora de
auxiliar outras pessoas é de ordem diferente.
O topo do sucesso, na verdade, é sair da posição de
CEO para a posição de sábio. Saber que está deixando um legado é algo muito
poderoso para um profissional como esses", afirma.
Um caso de transformação
A advogada curitibana Marília Pedroso Xavier, de 33
anos, é sócia de um escritório de advocacia na capital paranaense e professora
na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Especialista em divórcios, Marília está justamente
em processo de transformar sua carreira: ela agora quer se tornar uma
comunicadora e palestrante, com o mote "divórcio com dignidade" em
mente.
Cansada de ver clientes chegarem ao seu escritório
sem ter noção dos seus direitos mais básicos ou dos bens de posse de seus
ex-cônjuges, ela decidiu mudar seu foco de atuação, mesmo se considerando
bem-sucedida na área em que já atua.
Após passar por um processo de mentoria, Marília
fez um inventário de todas as tarefas que possuía em sua vida profissional e
reavaliou cada um desses itens, para então lapidar as competências que o novo
posicionamento profissional exigirá.
"Esse plano de ação é crucial. Se a gente não
desdobrar o nosso sonho em metas de curto, médio e longo prazo, ele acaba
ficando só na intenção", alerta a advogada.
Marília agora tem trabalhado para aprender a ser
mais didática e a se comunicar de maneira eficaz com o público leigo em
direito, mas sem que isso empobreça os conteúdos abordados.
Outro ponto importante é assumir publicamente o
novo objetivo.
"Às vezes as pessoas têm sonhos que não
dividem com ninguém, até por vergonha ou medo de não dar certo ou ser mal
visto. Esse não é o caminho", opina a advogada.
"Eu inclusive passei a recusar coisas dizendo
de forma clara que não podia fazer aquilo porque estava voltada para um novo
projeto meu. E aí contava o projeto."
Por último, Marília defende que, quando um
profissional está certo da necessidade de uma transformação vigorosa ou de uma
virada completa na carreira, é preciso fazer as coisas de uma vez só.
"Sempre pensei que mudanças seguras e
consistentes precisam se dar aos poucos. Mas na vida sempre vai puxar você de
volta para o que você tinha e era. Por isso, para a mudança acontecer, ela
precisa ser intensiva", explica.
Intensidade e paixão, aliás, parecem ser
ingredientes fundamentais em todos os tipos de reinvenção profissional.
A coach Priscilla de Sá chama a atenção para a
importância desses fatores até nos casos de negócios que nascem como um simples
quebra-galho. "Um plano B, para dar certo, precisa ser levado a cabo como
se fosse A.
Se você não tem orgulho, se você tem vergonha do
que está fazendo, é melhor nem começar. É preciso se apaixonar pela nova
identidade profissional.
Coisas como se sentir feliz ao mandar fazer os
novos cartões de visita, coisas ligadas à identidade profissional podem parecer
um detalhe, mas não são."
Um exemplo de plano B que virou A vem da
administradora e advogada Samantha Salomão, 43, que há seis anos passou a se
dedicar à carreira de organizadora profissional.
Samantha não se limita a ordenar armários
bagunçados, embora adore fazer isso. Ela usa a própria experiência profissional
prévia para botar ordem não só nos objetos de pessoas e empresas, mas também em
tarefas e rotinas. "É uma evolução da função de governanta", diz.
Foi um serviço que ela passou a oferecer após ampla
reflexão.
Priscilla
de Sá: "É preciso resolver as próprias mágoas, curar as feridas e fazer o
exercício de pensar em três ou cinco coisas boas que se viveu na experiência
profissional passada"
"Passei tantos anos me preparando, estudando,
investindo na minha formação, para então largar tudo e fazer algo diferente?
Sempre me questionei muito quanto a isso. Por isso, optei por um meio-termo.
Consegui exercer uma outra atividade, mas
oferecendo um pacote robusto, que não é barato e só é possível por conta da
minha formação e das minhas experiências anteriores", diz ela.
A mudança de carreira começou a ser gestada em
2011, quando Samantha perdeu seu emprego no departamento jurídico de uma
empresa e enfrentou perdas difíceis na família.
Sabendo que Samantha passava por um momento
financeiro delicado, a nutricionista com quem ela se consultava na época propôs
atendê-la em troca da organização dos 4 mil arquivos de pacientes do seu
consultório, transformados em uma planilha organizada.
Samantha acabou prestando o mesmo serviço para os
colegas de clínica da nutricionista, e desse trabalho foi indicada para outro:
a organização completa de uma biblioteca.
"Com coisas burocráticas como fichas de
pacientes eu já possuía a técnica de organização sem saber. Mas no caso da
biblioteca, eu tinha apenas o instinto. Precisei estudar, me preparar e
aprender a técnica", explica.
Hoje, Samantha possui até apresentadores de TV entre
seus clientes, e de um deles veio a ideia de que Samantha criasse um perfil
profissional no Instagram.
E o que é um perfil no Instagram senão um exemplar
virtual e mais rico do bom e velho cartão de visitas, nova arma de identidade
profissional?
BBC Brasil. ©
Getty Images. © BBC Marília, Samantha e Marcello. © Getty Images. © Getty
Images.
Portal
MSN.
Nenhum comentário:
Postar um comentário